7.6.05

Untz

» SWEET LITTLE SIXTEEN

Hugo Gonçalves


Eles entram no comboio da meia-noite. Em Cascais, no Estoril, em Oeiras. Trazem uma garrafa de J&B (15 €), outra de Coca-Cola de litro e meio (1,95 €). Misturam o whisky na garrafa de refrigerante. Bruno tem uns ténis Nike (150 €), Duarte calça uns Reebok (80 €), Tiago tem uma camisola Billabong (80 €). Cada um recebeu uma nota de 20 para sair nesta noite de sexta-feira. O gargalo de plástico circula pelas bocas – não se trata de um método de poupança ou de falta de dinheiro para beber, mas de um ritual de afirmação, de um rápido expediente para abandonar a sobriedade.

Eles têm calças descaídas que quase lhes mostram o rabo. Têm fitas ao pescoço que seguram as chaves de casa. Substituíram as clássicas camisas de riscas por camisolas com gorros, os sapatos de vela por ténis. Dizem: “Isso já não se usa.”

Eles crescem na linha de Cascais. Confessam que não sabem de nenhuma recessão económica, que continuam a receber o mesmo dinheiro. Têm 16 anos. Nasceram em 1988, a primeira geração filha da União Europeia, dos dinheiros comunitários, da prosperidade cavaquista. Nasceram no ano em que o programa Humor de Perdição, de Herman José, foi censurado na RTP, no ano em que Gorbatchev visitou as Nações Unidas quase três década depois de Kruchtchev, quando faltavam meses para que David Hasselhof, o actor da série Marés Vivas, desse um concerto para milhares de alemães celebrando a queda do Muro de Berlim.

Eles não se lembram do país sem auto-estradas, dos carros revistados na fronteira com Espanha, do mundo sem internet, sem telemóveis.

O comboio pára. Grupos de adolescentes saem, movem-se no túnel da estação de Alcântara. Escolhem diferentes saídas. Eles separam-se das amigas. Duarte diz: “Caga nisso, elas querem ir para o W.” Tiago explica o roteiro da noite, enumera as discotecas, todas em redor da estação de comboios: ABS, W, Garage – a mais popular entre os adolescentes –, e o Queens, onde a marca de roupa Billabong organiza uma festa. Pagam 12 euros na entrada. Entregam as senhas no bar. Whisky com Coca-Cola. Tiago, o mais precoce, é o único que não fuma. Com dez anos frequentava as matinés do Bauhaus, no Estoril. Com 11 iniciou-se nos cigarros. Com 16 acabou com o vício.

No domingo, sentam-se numa esplanada de praia. Há cinco rapazes com camisolas Billabong. Há ainda óculos de sol Von Zipper (80 €). Uma moto de 125 centímetros cúbicos (3 mil €), para a qual seria preciso carta de condução que o dono não tem. Estudam em liceu oficiais. Frequentaram colégios privados mas, na adolescência, pediram aos pais para os mudarem para o ensino público. Mais liberdade, menos carga horária, e a suspeita de menos controlo dos professores.

O aparelho nos dentes de Madalena dificulta-lhe a articulação das respostas, tal como a impaciência quando conta que chumbou por faltas a todas as disciplinas: “Não, não sei o que vou fazer.” Depois do castigo, voltou a sair uma vez por semana, com horário de chegada decretado para as sete da manhã. Recebe, nessas noites, e como quase todos os outros, 20 euros.

Há coisas que lhes parecem seguras porque são comuns entre todos. Semanada de 15 a 30 euros. Telemóvel. Quarto equipado com televisão, TV Cabo e computador com internet de banda larga. Dinheiro extra para roupa, para carregar os telefones. Duarte fala da inexistente gestão dos saldos: “Pomos 20 euros no cartão. No dia seguinte não temos nada.” Os amigos gozam com Miguel: “Este gajo gastou 70 euros só a mandar sms, a um cêntimo cada.” Sete mil mensagens escritas num mês, 233 por dia. Miguel tem a cabeça apontada para os ténis. Os amigos substituem-no na tarefa de responder: “Eram para a namorada.”

No ano em que os pais os inscreveram na escola primária, em 1994, Nelson Mandela foi eleito presidente da África do Sul, anunciava-se o fim do cavaquismo com a revolta na Ponte 25 de Abril. Publicaram-se fotos de universitários em manifestações antipropinas – um mostrava as nádegas, outro segurava o pénis. O Benfica ganhou o campeonato nacional. Estreou Pulp Fiction, de Quentin Tarantino.

Madalena chumbou por faltas mas aparece todos os dias na escola, a seguir ao almoço. Conversa com as amigas no outro lado da rua, fuma Camel e, perto das seis da tarde, regressa a casa, liga a televisão, senta-se ao computador para continuar a conversa com as mesmas amigas. Desta vez na internet. Utiliza o msn messenger. Interrompem-na para jantar em família. Regressa mais tarde, para falar nas janelas que saltam no ecrã. Deita-se antes da meia-noite.

Entre os adolescentes, o messenger tornou-se num engenho de contacto social que, como o álcool, dilui a vergonha e facilita a aproximação. Nos Salesianos, no Estoril – mensalidade, no 11º ano, de 303 € –, Rita Costa e Rita Pestana, psicólogas da escola, intercalam-se nas explicações sobre o uso compulsivo do messenger: “Têm mais à-vontade, podem dizer mais coisas. Não há o constrangimento físico de estarem frente-a-frente.” No messenger, não se mostram expressões faciais, desconforto físico. Para um rapaz que, em público e diante dos amigos, nunca iniciaria uma conversa com uma rapariga, basta, na segurança do seu quarto, abrir uma janela e teclar uma frase. O messenger dá-lhes liberdade, porque não é tão controlado pelos pais como era a utilização do telefone. Pode-se falar, pode-se mesmo ver os amigos durante as noites de semana. Trocam fotografias digitalizadas, utilizam microfones, câmaras.

No tempo sem escola, as horas de messenger ultrapassaram a televisão. Madalena diz: “Vejo a telenovela.” Duarte diz: “Sport TV”. Eles ligam o aparelho no quarto mas não lhe prestam atenção. Quase ninguém, neste grupo, vê noticiários, lê livros, jornais, revistas, nem mesmo as cor-de-rosa. Duarte responde, como se quisesse mostrar-se interessado: “Estou a ler Os Maias.” Depois ironiza, para não arriscar estranheza entre os amigos: “Há dois anos.”

Só dois deles têm actividades extracurriculares – fazem desporto federado. Francisco, que passou algumas semanas de verão em Inglaterra, a aprender o idioma, quer ser gestor. Os outros não sabem o que estudar. Não se interessam por viagens. Miguel diz: “Estive em Espanha com os meus pais e em mais uns países, mas não me lembro do nome.”

Internet, telemóveis que enviam fotografias, que produzem música. Num mundo global, eles não se interessam pelo resto do planeta. João Dionísio, psicólogo e director da Multivária, empresa de estudos de mercado, explica o desinteresse: “Estão na fase mais autocentrada da vida, em que se procura uma identidade pessoal, social e sexual. O uso que fazem do dinheiro – nas saídas, na roupa de marca – são tentativas de definição da personalidade. O facto de viverem numa microrrealidade privilegiada, como a linha de Cascais, isola-os mais do mundo. Depois, quando entram na faculdade, descentram-se.” Eles sempre receberam conforto. Confundem-no com preguiça. Uma normalidade que julgam intocável. Nos Salesianos do Estoril, as psicólogas dizem: “O conceito de esforço é diminuto. Estão habituados ao facilitismo, ao excesso de valorização das marcas, ao consumismo.”

Na discoteca Queens, o álcool desbloqueia a agilidade para a dança, o atrevimento das mãos. Duarte passa por uma miúda de saia, de botas, de t-shirt curta que mostra a barriga. Toca-lhe na cintura, ela aperta-lhe o nariz. O jogo infantil repete-se sempre que se cruzam, a brincadeira dos toques. Duarte regressa, informa os amigos: “Ela tem namorado e tem medo de ficar com fama de puta.” Ela tem 13 anos. Meia hora mais tarde tocam as línguas num sofá da discoteca.

Ricardo recorda uma noite no Garage. Como ele, uma rapariga que acabara de conhecer tinha de regressar no primeiro comboio. São sete estações para Ricardo chegar a casa, 19 minutos de viagem: “Não usei preservativo, foi uma rapidinha entre as duas carruagens.” Os amigos confirmam o relato. Nas discotecas, dizem, há mãos de rapazes dentro das calças das raparigas e, por vezes, a troca do favor. Duarte aponta para Catarina: “Ela curte com um diferente todos os fins-de-semana”. Ele, se pudesse, curtia com uma todos os dias.

Segundo um estudo recente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia, 16 por cento das adolescentes não usa qualquer contraceptivo, 32,9 por cento utilizou a pílula do dia seguinte.

Tiago analisa a pista de dança, diz: “Elas agora são mais atrevidas. Deixam de ser virgens com um gajo que nunca mais vão ver. Aqui são as maiores, mas na cama acanham-se.” Elas, como Catarina, como Madalena, comentam no domingo seguinte: “Eles querem comer e deitar fora.”

Há mais liberdade sexual, mais precocidade.

Outra vez a internet. Duarte mostra as fotos que as amigas lhe enviam pelo messenger quando conversam. Raparigas em biquíni, em posições sensuais. Ele tem imagens suas para retribuir. Na praia ou com óculos escuros. Há ainda fotografias de algumas adolescentes que, pela falta de discrição de alguns rapazes, começaram a circular. Há a história – e as imagens como prova – de uma miúda de 15 anos que se mostrou sem roupa ao namorado, dobrando-se sobre a câmara, apertando o peito. “Ela encornou-o, explica Duarte, e o gajo, para se vingar, mandou as fotos aos amigos, que mandaram para mais gente. Sempre que ela passava no liceu chamavam-lhe porca.”

Eram dez da manhã quando, num intervalo das aulas, numa rua perto da escola, Miguel e um amigo foram revistados pela Polícia: “Tinha um conto de ganza no bolso.” Miguel apareceu uma vez, como lhe mandou o juiz, na Comissão de Dissuasão para a Toxicodependência. Ficaram de o chamar mas, nos últimos dois meses, ninguém lhe telefonou. Os pais cortaram-lhe as saídas. “Fumei muito na altura do Natal, até na Noite de Consoada. Mas deixei.”

Um estudo do Instituto Português da Droga e da Toxicodependência, de 2001, diz que os jovens provam drogas cada vez mais cedo e que 14 em cada 100 alunos, com menos de 15 anos, já o fizeram pelo menos uma vez.

Na linha de Cascais, o álcool sempre foi mais valorizado que as drogas. Os mais ricos bebem, os mais pobres drogam-se – um legado da hegemonia da heroína, a droga mais suja, mais destruidora, agora de consumo reduzido entre os adolescentes urbanos. Mas o álcool é um teste à masculinidade. Um hábito de classe. Tiago diz: “O copos são melhores para um gajo se divertir.” Um shot num bar custa 1,5 euros, numa discoteca três euros. Entre a uma e as duas da manhã, dois adolescentes são carregados pelos amigos e vomitam na casa de banho do Queens.

Certa noite, Leonor acordou no hospital, com a ajuda de uma injecção de glicose, depois de entrar em coma alcoólico. Os pais foram buscá-la. Todos dizem que os pais sabem que os filhos bebem. Francisco conta: “A minha mãe já me ajudou a vomitar quando cheguei a casa.”

João Dionísio explica o consumo de álcool, de drogas: “Trata-se da partilha de significado com o grupo, da necessidade de procurar sensações, de experimentar. Eles não o fazem porque o mundo é mau, mas porque a música parece melhor, porque ficam mais felizes.”

Eles tinham dez anos em 1998, quando Suharto abandonou a presidência da Indonésia, quando Saramago ganhou o Nobel, quando inventaram o Viagra.

Os adultos costumam ter, em retrospectiva, uma ideia mais pura daquilo que foi o seu passado. Segundo João Dionísio: “Não existe, entre os adolescentes e a geração anterior, uma mudança da temática das emoções. Os impulsos são os mesmos.” Ou seja, o reconhecimento conseguido com as bebedeiras, o estilo e a maturidade dos cigarros, o risco das drogas, a ansiedade sexual. Mudou, no entanto, o tempo de iniciação. Em vez do embaraço ao entrar num clube de vídeo, há a pornografia na internet, e a possibilidade de conhecer estranhos em chats. Há telemóveis aos dez anos, saídas nocturnas aos doze: “Os miúdos do primeiro ciclo fazem imensa pressão junto dos pais”, explicam as psicólogas dos Salesianos. “E, como os outros saem, eles também querem sair. Só daqui a alguns anos poderemos avaliar as consequências desta precocidade.”

No final da tarde de domingo, sem ter de se preocupar com a tristeza que antecipa o despertador na manhã seguinte, nem com as aulas, nem com os trabalhos de casa que não fez, Madalena, a pensar no próximo fim-de-semana, diz: “Dantes é que nos arranjávamos todas para sair, agora nem usamos maquilhagem.”


(Os nomes dos adolescentes neste artigo foram modificados)


http://www.revista-atlantico.com.pt/05_Reportagem/Rep_04_2005.htm

3 Comments:

At 10:00 da tarde, Blogger impulsitem said...

é o que eu digo.
o que é que eu digo?

 
At 11:37 da tarde, Blogger D said...

Chamei a minha irmã que é do ano de1988 para ler isto comigo.
"Só daqui a alguns anos poderemos avaliar as consequências desta precocidade.”

 
At 6:29 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Como diria o Eça...é uma choldra! (mas tambem sempre foi...). ainda alguem se lembra do rapazinho louro? Charlie de seu nome?!...então e o rapaz dos copinhos de genebra...

 

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