Episódio 1 - Em que o Protagonista toma decisões e altera o seu futuro
Era uma noite fresca. Noite, quer-se dizer… digamos que era naquela altura em que nem é de noite nem é dia. Desponta já luminosidade do céu, mas sabemos que o saudoso astro não se mostrará por ainda uma boa hora. Pelas ruas soprava um vento leve que enrijecia as pernas e as pedras nos passeios, sobre as quais andava a passo apressado o Protagonista. Tinha acabado de chegar a esta cidade, e assim que pousara os pés no chão começou a andar, a andar. Ás suas costas levava uma mochila com tudo o que lhe pertencia. Um lápis tosco e curto, uma resma de folhas, uma manta e uma muda de roupa. Nos seus bolsos, tilintavam umas moedas já gastas e um canivete para o que desse e viesse. Enfim, objectos que ilustravam a sua vida por vezes difícil, ainda que descontraída.
A viagem tinha sido razoavelmente confortável. Seis horas num comboio ferrugento e barulhento, amontoado num vagão de terceira com cem outras pessoas, mudas, viradas para si, partilhando apenas o som industrial da máquina e os gritos dos animais assustados que muitos traziam. Todas essas seis horas foram passadas com as costas assentes na parede fria e metálica do vagão, de olhos cada vez mais pesados, à medida que a noite atingia o clímax.
A cidade a que chegara era-lhe desconhecida, no entanto caminhava com tanta determinação que se poderia supor ser nativo da mesma ou, quanto muito, um sujeito extremamente orientado para as coisas. Depois de 20 minutos a andar o Protagonista pára finalmente, tendo encontrado o que necessitava. Abriam os primeiros cafés e entra ansioso no mais próximo. Pede um café. Um homem oleoso de mãos oleosas serve-lho numa mesa e durante largos, larguíssimos minutos saboreia-o, apreciando o seu odor forte, o sabor a queimado e o calor que emana. Ahhhh… Leva as mãos aos bolsos e apercebe-se de que talvez não deva gastar o resto do seu dinheiro já. Aproveita então mais uns instantes e no minuto em que o dono do café se ausenta para uma visita aos lavabos, sai o Protagonista de cena para a rua, com ar natural.
Sempre tinha sido um escritor, e sempre à custa disso tinha vivido. Uma puta literária, poderíamos lhe chamar. Pequenos poemas, grandes romances, revistas de tamanho médio,… nada para ele era novidade. Mas nunca o fizera para virar rico mas apenas para poder encher as entranhas de tempos a tempos e dormir sobre um telhado quando pudesse. Cedo se apercebe que esta cidade nada lhe tem para oferecer lamentando a sua escolha em prosseguir a sua vida ali. Um mero espelho de qualquer outra grande cidade, acha-a totalmente desprovida de carisma, com cidadãos nos quais se denota infelicidade e raiva reprimida por uma urbanização desenfreada e caótica, onde as diferenças sociais saltam à vista e à alma. Uma autêntica cidade dos mortos, onde as pessoas perderam a alma, tentando ser superiores, deixando-se ser controladas pela máquina corporacional, em prol da tecnologia e ilusões de melhoramento da vida, que se sente estar a escorregar pelo ralo abaixo, ou não, já escorregou e habita agora um esgoto fedorento.
Continuando a sua caminhada pela cidade, tentando perscrutar pontos de interesse numa metrópole que parecia nua dos mesmos, tal era o aspecto industrial e comercial da mesma, prossegue agora pelo porto, olhando o mar “bravo, gelado Atlântico, tortuoso” como tinha uma vez escrito há muitos muitos anos. Encontra então um cartaz oferecendo trabalho, dinheiro, comida, luz, tecto e horários permissivos, carregando mercadorias para um navio (de carga, ora pois) sul-americano. Rápido de raciocínio, o Protagonista apercebe-se desta proposta fantástica, pois teria os recursos que lhe permitiriam escrever pelo puro prazer, e poderia finalmente ter um trabalho a sério, cujo dinheiro extra lhe daria maior flexibilidade numa próxima viagem. Procura então o capataz, e alista-se de imediato.
Durante as próximas semanas trabalha duramente de dia, transportando caixas, e de noite escreve até lhe doerem os olhos, as mãos e os dentes (do frio). Não sai do porto, tal é o desprezo que sente pela cidade, concentrando-se apenas no seu trabalho e na sua escrita até que no final do 30º dia, o dia final dos trabalhos, contava já com uma soma razoável que lhe permitiria viver descansado pelos seus meios por uns tempos e tentar outra terra. Actua novamente o Destino pois por sua sorte ou grande azar é-lhe feita outra proposta tentadora que teria dificuldade em recusar. No final do dia de trabalho então, o capataz aborda-o congratulando-o pelo bom trabalho deste último mês e expressa o desejo de poder contar com ele na viagem de regresso à América do Sul, incorporando-se na tripulação. Como tão bem adivinham irão começar aqui as verdadeiras desventuras do nosso herói, por terras desconhecidas e de infinito interesse. Boa viagem, ó Protagonista!
(continua, ora pois)
1 Comments:
muda de roupa
tosco
tentadora
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