22.6.05

De volta por desejo popular, em reedição - O Protagonista I - Uma cidade interessantemente descolorida

Era uma noite fresca. Noite, quer-se dizer… digamos que era naquela altura em que nem é de noite nem é dia. Desponta já luminosidade do céu, mas sabemos que o saudoso astro não se mostrará por ainda uma boa hora. Pelas ruas soprava um vento leve que enrijecia as pernas e as pedras nos passeios, sobre as quais andava a passo apressado o Protagonista. Tinha acabado de chegar a esta cidade, e assim que pousara os pés no chão começou a andar, a andar. Às suas costas levava uma mochila com tudo o que lhe pertencia. Um lápis tosco e curto, uma resma de folhas, uma manta e uma muda de roupa. Nos seus bolsos, tilintavam umas moedas já gastas e um canivete para o que desse e viesse. Enfim, os objectos básicos de sobrevivência.
A viagem tinha sido razoavelmente confortável. Seis horas num comboio ferrugento e barulhento, num amontoado vagão de terceira com cinquenta outras pessoas, mudas, viradas para si, partilhando apenas o som industrial da máquina e os gritos dos animais assustados que muitos traziam. O mote psicológico apropriado para com o que se iria deparar.
A cidade a que chegara era-lhe desconhecida, no entanto caminhava com tanta determinação que se poderia supor ser nativo da mesma ou, quanto muito, um sujeito extremamente orientado para as coisas. Depois de 20 minutos a andar o Protagonista pára finalmente, tendo encontrado o que necessitava. Abriam os primeiros cafés e entra ansioso no mais próximo, pedindo um café, enquanto se senta. Um homem oleoso de mãos oleosas serve-lho numa mesa e durante largos, larguíssimos minutos saboreia-o, apreciando o seu odor forte, o sabor a queimado e o calor que emana. “Ahhhh…” Leva as mãos aos bolsos e apercebe-se de que talvez não deva gastar já o pouco dinheiro que tinha. Sabia ele quão úteis poderiam esses 60 escudos vir a ser. Espera então mais uns instantes e no minuto em que o dono do café se ausenta para uma visita aos lavabos, sai o Protagonista de cena para a rua, com ar natural.
Gostava de se chamar um escritor, e à custa disso tinha sempre vivido. Uma puta literária, poderíamos lhe chamar. Pequenos poemas ou grandes romances, já os tinha todos feitos. Não por ganância, explorando as suas habilidades, mas apenas para poder encher as entranhas de tempos a tempos e dormir sobre telhas quando pudesse.
Prosseguindo a sua deambulação apercebe-se de que, mesmo que ainda agora tenha chegado percebe que esta cidade nada lhe tem para oferecer e lamenta a sua escolha em ali prosseguir a sua vida. Um mero espelho (não, um clone!) de qualquer outra grande cidade, encontra-a totalmente desprovida de carisma, e em cujos cidadãos se denota uma infelicidade e raiva reprimida, fruto podre de uma urbanização desenfreada e caótica, onde as diferenças sociais são bem patentes. Uma autêntica cidade dos mortos, onde as pessoas perderam a alma ao deixarem-se ser controladas pela máquina corporacional, em prol da tecnologia e das ilusões de um futuro melhoramento da vida, que se sente estar a escorregar pelo ralo abaixo, ou não, já escorregou e habita agora um esgoto fedorento.
Continuando a sua caminhada pela cidade, tentando perscrutar pontos de interesse numa metrópole que parecia nua dos mesmos, tal era o aspecto industrial e comercial da mesma, prossegue agora pelo porto, olhando o mar “bravo, gelado Atlântico, tortuoso” como tinha uma vez escrito há muitos muitos anos. Encontra então um cartaz oferecendo trabalho, dinheiro e comida, carregando mercadorias para um navio (de carga, ora pois) sul-americano. Rápido de raciocínio, o Protagonista apercebe-se da felicidade desta proposta, pois eram-lhe assegurados os recursos que lhe permitiriam escrever pelo puro prazer e não mais, e poderia finalmente ter um trabalho a sério, cujo dinheiro extra lhe daria maior flexibilidade para uma próxima viagem. Procura então o capataz, e alista-se de imediato.
Durante as próximas semanas trabalha duramente de dia transportando caixas, e de noite escreve até lhe doerem os olhos, as mãos e os dentes do frio, que caía impiedoso no cais. Não sai da zona portuária, tal é o desprezo que sente pela cidade, considerando já sua prerrogativa o total corte de relações com esta aberração urbana. Assim concentra-se apenas no seu trabalho e na sua escrita, com resultados positivos, até que no final do 30º dia, o dia final dos trabalhos, contava já com uma soma razoável que lhe permitiria viver descansado pelos seus meios por uns tempos e tentar a sua sorte noutra terra, preferencialmente uma que não tivesse vendido a sua alma. Entra em jogo de rompante o Destino, pois por sua sorte ou grande azar é-lhe feita nova proposta tentadora que teria dificuldade em recusar. No final do dia de trabalho então, o capataz aborda-o congratulando-o pelo bom trabalho deste último mês e expressa o desejo de poder contar com ele na viagem de regresso à América do Sul, incorporando-se na tripulação. Como tão bem adivinham irão começar aqui as verdadeiras desventuras do nosso herói, por terras desconhecidas e de infinito interesse. Boa viagem, ó Protagonista!

(continua, ora pois)

2 Comments:

At 9:55 da tarde, Blogger impulsitem said...

eu não gosto de muitas estórias, gosto desta.

 
At 12:47 da tarde, Blogger KOE said...

cabe nos bolsos das minhas calças.

 

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