10.11.07

Sábado à noite em Vila Nova de Milfungos

Era noite e estava escuro e doía-lhe o estômago. "Belo dia para me esquecer de trazer a Alka-Seltzer" gritou, em dor, para a rua deserta. Mais uns passos e enfim, o café, que com lanternas de papel iluminava a esplanada de verão, ainda assim pouco animada. Da rádio explodiam temas de dança sul-americana, la bamba, a lambada, o tango, mas apenas dois velhos tomavam um copo de vinho duma garrafa bacienta e uma mulher muito gorda suando em bica abanava um leque espanhol com entusiasmo, tremendo desdenhosamente as gorduras dos braços, entretida pela música e três quartos de uma garrafa de água ardente.
Entra então e pede uma água com gás que lhe traz a filha da Rosalinda, a que lhe limpa a casa uma vez por semana. "Então esses estudos? Passaste?", "Ainda me falta o Francês".
Olha então para cima e repara na televisão que dá ainda a novela. "O Lúcio ainda há de descobrir que aquela Francisca é uma cabra" pensou, enquanto se dirigia para a casa de banho, que a bexiga já lhe apertava. Instala-se no urinol. "Espera... cinco,... quatro, três..., um" mas nada, não saía, já andava a tomar os anticalcificantes que o dr Lopes lhe receitara há dez dias e nada, ele bem sabia "que tinha de ser mais forte, que o irmão dele tomava o Uriflox e doeu-lhe até morrer,... há dois anos já. E a Laurinda? A pobre rapariga, nunca mais a vi, já deve ter acabado o Direito, Espera, uma gotinha, mais duas, ai porra que dor...". Mas lá foi.
Fecha a braguilha e pergunta se já veio o Joaquim. Não veio ainda, mas não tarda. Volta para a mesa e tira do bolso da camisa umas duas folhas de papel e uma esferográfica, cortesia da Uriflox. "Querida mulher, como estás? Desculpa ainda te não ter enviado os cinco contos de réis para a empreitada do teu afilhado mas ainda não recebi o cheque este mês. Também a dona Fernanda da Mata não me pagou o conserto do frigorífico e estou precisamente agora à espera do Joaquim que jogou comigo no outro dia à bisca lambida e, coitado do rapaz, perdeu como um palerma.
Está calor por aqui. Vem cá para a semana o Coronel Dias, que está a ver se se candidata à nossa junta. Promete instalar um semáforo e pôr uma televisão a cores num cantinho especial na praça (aquele junto ao busto do D. Miguel), ah! e ainda dois bailes por ano, com a banda da Cooperativa. Era bom era mas cá para mim ele é um bandido; adiante que me enerva.
O primo Zé acabou agora o serviço mas não arranja emprego. Será melhor mandá-lo para aí ou pô-lo na Guarda? Eu cá não o queria ver guarda mas isto está muito feio, muito feio.
Bem já chega, beijinhos ............X"
Lá estava o Joaquim. "Aqui está, velho" diz, tirando dos bolsos e atirando para cima da mesa algumas notas amarfanhadas. "Pensei que tinha de ir a tua casa e foder a tua irmã..." respondeu. "Vê lá é se te calas se não queres levar umas murraças nesse nariz", e saiu. "Bom miúdo este Joaquim" pensa, e pede, e toma, um copito de vinho.
Mais tarde, depois de ter deixado a carta para a sua mulher no marco, à porta da mercearia do sr. Horácio, regressa a casa. Pousa as chaves na cómoda da entrada e vai à cave buscar um pedaço de corda. Segue então para o quarto, despe-se e deita-se sobre a cama. Estica-se para a mesa-de-cabeceira, abre uma gaveta e tira um canivete. Começa a esfregá-lo com força contra a testa, os braços, o peito, a barriga e as pernas, criando pequenos fiozinhos de sangue. Pausa por um momento e recomeça. Levanta-se então e vai buscar o banco de madeira que tem aos pés da cama. Ergue-se em cima dele e pendura a corda ao candeeiro do tecto, amarrando o seu pescoço num nó. Balouça a cadeira e cai. (Não) morreu.

1 Comments:

At 5:54 da tarde, Blogger KOE said...

Dedicado à prosa de FTA.

 

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