15.10.07

II

Ao tirarem-nos do comboio pude ver que tinhamos parado numa floresta, numa espécie de esconderijo do regime. Por um trilho ocultado por um largo arbusto, levaram-nos até a uma clareira onde se isolava uma cabana de dimensões consideráveis e alguns veículos à volta, como motas com sidecar, jipes e um carro que ostentava a cruz de ferro na capota, um estatuto reservado aos Oficiais e aos Heróis de Guerra.
Nada disto fazia sentido. Sendo um simples turista não entendia que desígnios poderiam possivelmente ter para mim, e que razões teriam para ter sido sujeito a tamanha violência. Garantidamente iriam receber uma carta incisiva da Embaixada.
Sentaram-nos numa sala, que tinha apenas algumas cadeiras e uma secretária. Quatro quadros do Saudoso Líder preenchiam as paredes, mostrando-o de frente, de perfil (à direita), participando numa caçada e discursando. Delegaram um soldado raso para nos tirar as cordas. Assim que o soldado as soltou ao primeiro cigano, este leva imediatamente a mão à sola do sapato de onde graciosamente tira uma navalha, apanhando de surpresa os soldados. Com rapidez, rasga a barriga do mais próximo. Já ele se dirigia para outro quando se ouve um tiro e o cigano cai morto, escorrendo sangue de um buraco da cabeça. O homem que disparou tinha justamente acabado de entrar no quarto. Rodou a sua pistola, uma Makarov PM, habilmente em torno do dedo e alojou-a de volta no coldre. Toda a gente conhecia aquele homem. Trazia luvas e boina vermelha. Era a estrela brilhante do regime, o Coronel Aleksandr Leonovitch Spassky.

11.10.07

TGIM - A Fingir Que Ainda Me Interesso/Preocupo

Eram 10h15, e chegava o comboio a Chisinau. O sol abrasador de verão espreitava por entre as cortinas da minha janela, despertando-me. Enquanto tirava os pés de cima do banco à minha frente bocejei longamente. Levantei-me. Os pelos da barba de três dias, ligeiramente suja e suada, fazia-me comichão. Tinha de arejar. Precisava de esticar as pernas e as costas, entorpecidas por uma viagem que estava a completar duas semanas. E sempre nestes ronceiros cujos estofos estavam já descarnados ao tabopan de suporte.
Acendi o primeiro cigarro da manhã. Era de um maço Old Stone que carregava comigo já há cerca de 2000 milhas, quando o tinha comprado em França, por uns castelos. Eram bastante maus. Por esta altura chegava à estação o das 10h23 para Grozni Grad. Jovens com maletas numa mão e sandes de pés de porco, uma especialidade local, na outra, corriam para o apanhar. Meninos de escola atiravam pedras às locomotivas a vapor que se quedavam abandonadas num troço orfão, quebrando vidros e urinando freneticamente. E velhos, muitos velhos, e velhas, tantos quanto eu nunca tinha visto esperavam o regresso dos seus filhos e netos soldados, ou apinhavam-se à volta dos vagões-correio, procurando saber as últimas da frente ocidental.
Deleitado na apreciação deste quadro vivo, sou surpreendido por um guarda bolachudo que me nocauteia covardemente com uma coronhada no topo da espinha, deixando-me estendido entre baba e sangue enquanto me roubava o relógio e os documentos.
Quando dou por mim encontro-me com os pés e mãos atados a um banco de comboio em direcção à Crimeia Oriental. Mais três indivíduos, ciganos, com cara de familiares uns dos outros, encontravam-se sentados junto a mim, e falavam entre si em moldavo, de vez em quando olhando para mim e rindo, à socapa. Dois soldados, armados com pistolas-metralhadoras guardavam cada um uma das portas da divisão. A certa altura um dos ciganos, o mais velho, dirige-se ao soldado mais próximo, e parece pedir-lhe um cigarro. É respondido prontamente com um pontapé nos dentes que o deixa a cuspir sangue e bocados partidos dos incisivos. Os outros protestam. O segundo soldado aproxima-se e, com uma soqueira, esmurra-os aos dois. Ao primeiro no nariz, ao segundo bem na testa. Ambos os soldados olham para mim, como que inquirindo se já tinha percebido como as coisas se passavam ali. Com um aceno, desviei o olhar.
O comboio parava, estavamos a chegar. O cigano mais velho e o do meio tinham já estancado o sangramento, mas um deles ainda não se tinha mexido. Ao levantarem-nos os soldados deram-se conta que o cigano mais novo tinha morrido do golpe na cabeça. Alguma artéria cerebral se estoirou com o golpe e, levantando-lhe a cabeça que estivera tombada durante todo este tempo, surge um enorme hematoma na fronte. Cortam-lhe as cordas e atiram-no pela janela do comboio. Os outros dois nada dizem.